a vida não dorme
A vida não dorme, se dá bem embaixo do sol que faz ao meio dia e suja as mãos no meio da madrugada, é senhora de vendavais e de tudo o que nunca precisará ser concreto pra ser real. Carla Madeira, inclusive, já disse que a vida tem uma boca banguela e mesmo assim gosta de nos exibir a extensão da mordida, “apunhala com a mesma faca que passa manteiga.”
Não há quem não tenha experimentado uma esquina aguda na geografia do próprio peito: a angústia, esse afeto sem objeto.
A angústia peregrina que escava fundo e sem dó o estômago da solidão.
É a solidão na vida que não descansa. Li uma entrevista da (muito íntima dos segredos da vida) Juliana Leite em que ela dizia “o amor não nos livra de atravessar uma crise de enxaqueca em absoluta solidão.”
Sim, porque há o que sentimos quando nem parece haver autorização pra sentir. Você já comeu, já dormiu, os boletos estão pagos, as coisas estão certas, e você tem medo. Sua mãe que não recebeu uma gota de carinho acaba sendo um deserto segurando na pele a única gota de água que você precisava pra um tanto de liberdade. E aí não podemos evitar o impulso de nos dedicarmos a tentar evitar o que sequer vimos nascer.
Num dos contos que mais admiro, Clarice (claro, Clarice) desenha uma mulher que vai a um zoológico buscando um pouco de carnificina. Há de existir o sangue, a fome, a injustiça que me ofereça ao menos um pouco da raiva que preciso sentir.
I-lu-são.
Até o leão passeava enjubado e tranquilo. “Mas, isso é amor de novo”, dizia a mulher revoltada tentando se reencontrar com seu próprio ódio. Nem a girafa, elegante demais; nem o macaco, doce demais; nem o hipopótamo, úmido demais. Tudo era a paciência, a primavera, a poeira sem pressa, o cheiro quente do sol.
Exaurida, depois de ter se lançado ao abrupto de uma montanha-russa, os ventos no avesso da terra talvez fossem, ao menos, a violência que ela precisava contra ela mesma, exaurida ela pousa a testa nas grades de uma jaula, até que nota surgir, outra vez, de dentro dela, a vontade de matar. Era quase o ódio, quase o que ela precisava. Aquele corpo de mulher, miúdo e contrito, a escola de todas as idades, tudo o que ela sabia, cuidar e resignar-se, suportar e acolher, esperar e sorrir. Onde estava o ódio que finalmente lhe faria viver?
Até que, antes tarde do que nunca, as grades certas. Ajustou os olhos. Respirou as nuvens. Ouviu em algum lugar um riacho, a água sempre parece tão fácil, avança decidida sobre qualquer dureza. Nas mãos o ferro frio e duro. Ergueu os olhos: viu um búfalo. Imenso. As patas sólidas e a cabeça convicta. E aí o búfalo olha de volta. Dispara sem dó a flecha da sua perspectiva: a mulher.
Ela desaparece do corpo. Sabe o que sente com a segurança das distâncias. Até que volta, sente os pés de novo na terra. O agora zumbindo nos seus ouvidos.
A mulher queria do búfalo a alforria e a vingança. No bicho, a salvação da alma. O animal responde ao chamado e caminha na direção dela. As grades, uma linha. Os dois frente à frente.
O búfalo calmo de ódio. A mulher sente nas mãos o punhal que ela mesma construiu um dia. Pra sobreviver, claro. Porque a vida impõe as regras e depois te cobra a conta.
Sentir a raiva para render-se, enfim.
Clarice. Sim. Leia inteiro quando quiser. O conto que fala muito mais do que diz: O Búfalo.
A coisa toda com a literatura é que as respostas para as angústias de antes aparecem no futuro do passado, a gramática da vida ignorando a gramática da língua, como já sabiam Vigotski ou Benjamin.
Daqui do futuro, te garanto, uma outra Clarice responderia pra ela mesma e pra mim e pra você que quando temos na boca o gosto do hábito de “olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro pois há aquilo em que a prisão é segurança, as barras um apoio para as mãos” o que se há de fazer é experimentar a maior das liberdades: “não ter medo de não ser compreendido” porque “olhando a extrema beleza dos pássaros amarelos calculo o que seria se eu perdesse totalmente o medo."