Há alguns dias, tive um sonho e - apesar da dança furiosa do Tempo - sigo presa à obsessão que ele me impôs.
Eu, sozinha. Ao meu redor uma sala vazia. Uma luz cinza, meu corpo inteiro é uma figura em preto e branco. Até que percebo no meu braço um corte. Tão, mas tão fundo que posso ver o osso. Mas, não há nenhuma gota de sangue e daí todo o meu espanto. Como é possível que não esteja sangrando?
Eu olho nos olhos do vazio e grito: VOCÊ NÃO VÊ? EU PRECISO DE AJUDA!
Eis que o vazio não é dado à respostas e eu fico com o silêncio. Respondo pra mim mesma, então: claro, se não há sangue ninguém pode ver.
No seu último livro, uma preciosidade chamada A Natureza da Mordida, Carla Madeira desenha uma frase assim:
"você não teve culpa, teve corpo"
Leia outra vez.
Numa esquina qualquer do mundo, a vida está sendo a vida, um drama comum se desenrola na garganta do agora com todos os requintes do que é cotidiano. Uma notícia. Uma surpresa. Uma separação. Uma alegria. E você está lá dentro da coisa, nem o protagonista você é, mas seus pés estão no palco do drama. E simplesmente porque uma coisa está acontecendo, seu corpo fica impregnado do que quer que seja a natureza da coisa. Os gestos se inscrevendo no seu feitio. Uma curva se infiltrando na sua nuca. Um gosto pra sempre na boca na iminência de uma mesma palavra. É isso. Você não tem culpa, mas tem corpo.
Muitos anos depois, na ausência do sangue, invisível pra muita gente, você ainda tem um corte fundo no braço e não pode agir como se o corte não existisse. Aliás, você só age. Nem se dá conta de que o corte governa o passo, imprime na decisão o medo, na desistência o tanto, na fuga o ritmo.
Só que ver o que não se via é importante. E pra isso servem os encontros. Talvez, a terapia seja esse grande encontro. Ao menos a terapia deveria ser a consciência desse encontro. E o manejo das suas consequências. Porque os encontros são muitos e variados. Dentre os meus preferidos: os livros.
Aí você vê e tudo se transforma um pouco, às vezes alguns milímetros. E é tudo o que temos.
Hoje percebi o corte como um mergulho em águas muito minhas, não como uma ferida, mas como quem carece mesmo de explorar os ossos, ou como disse Clarice (a essa altura já imagino que essas cartas são sempre um pouco dela), me sinto mais perto do coração selvagem da vida.
Estou viva. Onde não tem mais sangue tem osso.
Saio do fundo. Respiro na superfície.
Que lindeza de news!!! Tua escrita sempre me arrepia! Já quero teu livro novo (ele vai ter que dar um jeito de chegar aqui na Australia) kkkk Um abraço apertado de quem te admira muitooo